quinta-feira, 11 de abril de 2013




Afinando o Coro Cineclubista

A ambientação tinha todas as características de um esconderijo clandestino, local marcado para reunião da “Avançar¹”, tendência política de inspiração “partidão brasileiro”, que atuava no Movimento Cineclubista desde 1979. Das reuniões participava inclusive quem não era do partido, desde que convidado pela liderança. Mas, sempre tem um, porém: Cineclubista mineiro, mesmo sendo comunista não participava, tal era o grau de divergências existente. A reunião aconteceu no segundo dia da Jornada, depois da abertura, que acorreu na noite anterior, uma praxe da época. Uma noite no meio, depois da abertura e começo dos trabalhos da Jornada no dia seguinte, mas.

Refeitório da 15ª Jornada Nacional de Cineclubes. Barbudo de pé, Ricardo, presidente da Federação Mineira de Cineclubes, ao fundo, cabeça branco de pé, Maurice Legead e sentado Jean-Claude Bernadet.

Cartaz da 14ª Jornada Nacional de Cineclubes, Brasília, 1980.

O Campus da Universidade Federal de Campo Grande, Mato Grosso, antes da divisão do Estado, fora tomado pelos cineclubistas no sentido mais democrático possível, que se reuniram na 15ª Jornada Nacional de 1981. Apesar de ser uma Jornada tranquila, diga-se, sem eleições, com a “Avançar”, tornava-se prudente, organizar o tom do coro majoritário.

De repente, uma informação penetrou no meio da reunião, que interrompida, levou a direção da Jornada na pessoa do seu presidente², a liderança da “Avançar”, a apaziguar os ânimos. Cineclubistas ligados ao Movimento Negro estavam chamando correligionários da causa, para um bate papo informal, sobre questões que achavam pertinentes ser discutida na Jornada em função da importância e da relação que, aqueles cineclubes tinham com a questão nos seus afazeres diários.

Com discurso moralizante, bocejando, babando a liderança vociferava: Uma reunião desta natureza não pode acontecer, abre um precedente perigoso, para a partidarização do Movimento Cineclubista por partidos políticos, isso devemos combater.


No decorrer da jornada, companheiros velhos de guerra conversam, aquele era um momento para confraternizações, discussões, conchavos,... Homens e mulheres trocavam notícias, desventuras, amores, namoros, imagens e sonhos da labuta cineclubista. Discutiam sobre aquela sequência do filme³ em que um ancião japonês sobe, na contra luz, uma ladeira íngreme com enorme saco nas costas, em contra ponto, descendo vem o migrante nordestino e cruza o imigrante que sobe; a luz, o ritmo à atmosfera, alguém quer saber por que, na mesma sequência, o japonês sobe e o nordestino desce quando se achega na roda, o lendário cineclubista baiano4, “estava branco de sua negritude”. Pasmos, ficamos todos e à inevitável pergunta saiu. A inquieta resposta veio firme, enigmática e num tom quase ameaçador:
- Ele vai ver, na próxima Jornada eu vou trazer um ônibus!
- O que aconteceu?
- Que ônibus?
- Porque a reunião não aconteceu?
- Não estou entendendo nada!
- Que coisa mais cabulosa, o que é que tem uma reunião de cineclubistas negros, brancos, pardos, amarelos, mestiços?

Pairava no ar a interrogação. Embasbacados o congresso continuou, o clima de congraçamento que sempre marcara aqueles encontros estava um pouco ofuscado. Nas andanças das horas o tempo segue. Aquela era uma época em que discordar não era sinônimo, como hoje, de desavença pessoal, mas pontos de vista diferente, opção respeitada e acalentada por todos e as conversam fervilhavam por todos os cantos, recantos e fluir nos poros.

 - Só ele acha, que só ele pode se reunir, os outros não.
- Não entendi.
- Rapaz eu estava numa reunião com o cara, quando chegou à informação que o movimento
negro queria se reunir.
- Como assim, Movimento Negro?
- Às escondidas?
- Não era o Movimento, mas cineclubistas negros. E não era às escondidas, era reunião aberta.
- Agora melhorou. Quer dizer...
- E esta história de ônibus na próxima Jornada?
- É o seguinte. O cara depois de chamar a reunião que eu e muito mais gente estava participando com ele, às escondidas, fui querer saber o porquê de uns podem se reunir e outros não? Ai ele me respondeu dizendo que eu não entendo as coisas, que só eu participo dos encontros e fico falando em nome dos cineclubes baianos.
- Mas com isso eu concordo, porque os cineclubes baianos não participam dos encontros?
- Aliás, não só os baianos!

- Os cineclubes baianos funcionam nas periferias, nos alagados, eles não têm condições de ficar uma semana fora. Eles não têm dinheiro nem para alugar os filmes. Eles passam filmes quando conseguem de graça, quando eu repasso do Clube de Cinema5, da Universidade ou quando peço e os cineastas baianos liberam os filmes de para eles. Quer saber, os cineastas baianos são os que mais emprestam filmes de graça pros cineclubes.

- Também pudera né, a maioria foram cineclubistas.
- Rapaz, a maioria nem trabalha...
- Quem não trabalha, os cineasta ou os cineclubistas?
- Tô falando dos cineclubistas. Eles não trabalham não é porque são vagabundos, é que estão
desempregados e quando trabalhando, ganham muito pouco, nem dar pra sustentar a família, aí todos têm que trabalhar, inclusive os irmãos menores. Então, eles nem tem como pagar a condução para ir pegar os filmes, eu é que levo. Como pessoas nessas condições podem participar de uma Jornada e ficar uma semana?

Primeira delegação baiana na 15 Jornada de Piracicaba, 1982. Promessa feita em Campo Grande, comprida em Piracicaba.

Dados como estes, apesar de não ser novidade, ditos assim, numa situação como aquela, toma outro rumo, ganha outra dimensão, a realidade bate na cara, no estômago, a questão de classe, de gênero, de raça, já estava na mesa sem ao menos darem conta disso. Aliás, ela fora notada, na jornada seguinte (Piracicaba, com o ônibus lotado da delegação baiana, entre outras). Jean-Claude Bernadet numa conversa informal deu a deixa: os cineclubes mudaram, tem a cara do povo, vê se pela maneira de vestir, de andar, pelo corte do cabelo6, pelos dentes, pela música que cantam, como dançam, se divertem e pelo modo do falar. Já escutaram o som do português que eles emitem; como soa diferente do que ouvimos nos filmes, na televisão? Quem é mesmo que organiza os cineclubes? E o cineclubista é o que, público?

Retomando a linha do tempo do descambar do congresso e para que essa conversa fuja do inverso do novelo, quanto mais desenrola, maior fica. No Jornal Mural7 da Jornada, essas e outras questões, estavam lá, registradas em forma de “Troféus”, a luta classe, tão propagada já estava em ação. Visto hoje desta perspectiva, a luta travada com o cineasta, exigindo concordância dele para suprir uma sequência do seu filme8, quando exibido em cineclubes periféricos, mas do que patéticos, estavam perdendo o bonde da história.
Lobos mudam os pêlos, não a pele.




Referências e Citações


¹ - “Avançar” – Tendência política que atuou no Movimento Cineclubista Brasileiro, criada por cineclubistas, militantes do Partido Comunista Brasileiro, depois da 12ª Jornada Nacional de Cineclubes, Caxias do Sul, 1979, quando, por quatro ou cinco votos, a chapa da Liberdade e Luta (LIBELU), tendência política, de inspiração Trotskista, famosa no Movimento Estudantil e que atuava no cineclubismo, ameaçou o bloco hegemônico liderado pela “Avançar”, perdendo a disputa pela direção do Conselho Nacional de Cineclubes, até então e informalmente, dominando pelo também famoso “Partidão”.  Irônica e arrogantemente, o nome “Avançar” fora retirado de uma frase de Stalin (Josef Vissarionovitch Stalin), quando este ordena o avanço do Exército Vermelho sobre os invasores nazistas.

² - Luiz Felipe Bacelar de Macedo foi eleito presidente do Conselho Nacional de Cineclubes em 1978, na 12ª Jornada Nacional de Caxias do Sul, RS.

³ - “O Baiano Fantasma”1984, filme dirigido por Denoy de Oliveira.

4 - Luiz Orlando da Silva”, um dos maiores cineclubista do país, amigo de todos, nunca pleiteou cargo, além do Movimento da Bahia, morto em agosto de 2006.

5“Clube de Cinema da Bahia”, um dos mais importantes Clubes de Cinema do país, fundado por Walter da Silveira, responsável pela condição de cineasta de Glauber Rocha. Este participou da 1ª Jornada Nacional de Cineclubes, representando o Clube da Bahia, em São Paulo, 1959. Depois disso o “Clube” foi dirigido por Guido Araújo e sucedido por Luiz Orlando da Silva. Nesta condição ele participou do cineclubismo brasileiro.

6 “Jornal Mural”, foi um expediente criado espontaneamente pelos cineclubes, sem registro em que Jornada, onde se outorgava “Troféus” a cineclubistas e situações ocorridas durante a realização das jornadas. Os “Troféus” adquiriram simbologias significativas da cultura cineclubista, depois de sua primeira edição como Encarte dos “Anais da Jornada” de Ouro Preto, 1985, na gestão deste autor, que apesar das poucas edições, são dignas de tese.

7Na plenária final da Jornada também, estas e outras questões vieram à tona. As Moções de Apoio que as documentou para história. Elas podem ser vistas nos “Anais da Jornada”, publicadas em brochuras pelo CNC. Aliás, estas questões foram pré-anunciadas, mesmo que indiretamente, no cartaz da 14ª Jornada de Brasília, 1980, onde se vê a fotografia negritada de um negro, cabelo Black-Power, tendo ao fundo, películas cinematográficas em vermelho e branco, sobre o fundo preto e preto, sobre o fundo branco, sugerindo alusão à maneira guerrilheira de carregar munições, com o jeito cineclubista de qualificar de “revolucionário” o movimento.

8 João Batista de Andrade, diretor do filme “O Homem que Virou Suco” 1981, um clássico dos filmes exibidos pelos cineclubes da época. Durante a Jornada, quase todos os Administradores Regionais da Dinafilme, a Diretoria Executiva do CNC e vários cineclubes, se reuniram com João Batista, solicitando a exclusão de uma sequência do filme, em função de questões morais. João não concordou, mas deixou a questão em aberto para critério do “movimento” e/ou de cada cineclube. Esta questão foi abordada no texto “Proezas do Homem Que Virou Suco”, entre os cineclubes, publicada no livro homônimo do filme, organizado por Ariane Abdalha e Newton Cannito, pela Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, pag. 178 a 188, desse autor.
  

 Jornada de Campo Grande, o de calção branco era do Cineclube Lanterninha Aurélio, esqueci o nome dele, alguém lembra? Quando eu (bolsa tiracolo) do Cineclube Capitães de Areia; Serge Roizman (barba) do Cineclube TAIB, Eufraudísio (camisa branca) do Cineclube Icaraí e o Heleno do Cineclube da Penitenciária Feminina de São Paulo capital, atravessávamos o gramado, fomos desafiados para uma pelada, apesar do Eufraudíso insistir que era um "baba".