Afinando o Coro Cineclubista
A ambientação tinha todas as características de um esconderijo
clandestino, local marcado para reunião da “Avançar¹”, tendência política de
inspiração “partidão brasileiro”, que atuava no Movimento Cineclubista desde
1979. Das reuniões participava inclusive quem não era do partido, desde que
convidado pela liderança. Mas, sempre tem um, porém: Cineclubista mineiro, mesmo
sendo comunista não participava, tal era o grau de divergências existente. A
reunião aconteceu no segundo dia da Jornada, depois da abertura, que acorreu na
noite anterior, uma praxe da época. Uma noite no meio, depois da abertura e
começo dos trabalhos da Jornada no dia seguinte, mas.
Refeitório da 15ª Jornada Nacional de Cineclubes. Barbudo de pé, Ricardo, presidente da Federação Mineira de Cineclubes, ao fundo, cabeça branco de pé, Maurice Legead e sentado Jean-Claude Bernadet.
O Campus da Universidade Federal de Campo Grande, Mato
Grosso, antes da divisão do Estado, fora tomado pelos cineclubistas no sentido
mais democrático possível, que se reuniram na 15ª Jornada Nacional de 1981. Apesar
de ser uma Jornada tranquila, diga-se, sem eleições, com a “Avançar”,
tornava-se prudente, organizar o tom do coro majoritário.
De repente, uma informação penetrou no meio da reunião, que
interrompida, levou a direção da Jornada na pessoa do seu presidente², a
liderança da “Avançar”, a apaziguar os ânimos. Cineclubistas ligados ao
Movimento Negro estavam chamando correligionários da causa, para um bate papo
informal, sobre questões que achavam pertinentes ser discutida na Jornada em
função da importância e da relação que, aqueles cineclubes tinham com a questão
nos seus afazeres diários.
Com discurso moralizante, bocejando, babando a liderança
vociferava: Uma reunião desta natureza não pode acontecer, abre um precedente
perigoso, para a partidarização do Movimento Cineclubista por partidos
políticos, isso devemos combater.
No decorrer da jornada, companheiros velhos de guerra conversam,
aquele era um momento para confraternizações, discussões,
conchavos,... Homens e mulheres trocavam notícias, desventuras, amores, namoros,
imagens e sonhos da labuta cineclubista. Discutiam sobre aquela sequência do
filme³ em que um ancião japonês sobe, na contra luz, uma ladeira íngreme com enorme
saco nas costas, em contra ponto, descendo vem o migrante nordestino e cruza o
imigrante que sobe; a luz, o ritmo à atmosfera, alguém quer saber por que, na
mesma sequência, o japonês sobe e o nordestino desce quando se achega na roda, o
lendário cineclubista baiano4,
“estava branco de sua negritude”. Pasmos, ficamos todos e à inevitável pergunta
saiu. A inquieta resposta veio firme, enigmática e num tom quase ameaçador:
- Ele vai ver, na próxima Jornada eu vou trazer um ônibus!
- O que aconteceu?
- Que ônibus?
- Porque a reunião não aconteceu?
- Não estou entendendo nada!
- Que coisa mais cabulosa, o que é que tem uma reunião de
cineclubistas negros, brancos, pardos, amarelos, mestiços?
Pairava no ar a interrogação. Embasbacados o congresso
continuou, o clima de congraçamento que sempre marcara aqueles encontros estava
um pouco ofuscado. Nas andanças das horas o tempo segue. Aquela era uma época
em que discordar não era sinônimo, como hoje, de desavença pessoal, mas pontos
de vista diferente, opção respeitada e acalentada por todos e as conversam
fervilhavam por todos os cantos, recantos e fluir nos poros.
- Não entendi.
- Rapaz eu estava numa reunião com o cara, quando chegou à
informação que o movimento
negro queria se reunir.
- Como assim, Movimento Negro?
- Às escondidas?
- Não era o Movimento, mas cineclubistas negros. E não era às
escondidas, era reunião aberta.
- Agora melhorou. Quer dizer...
- E esta história de ônibus na próxima Jornada?
- É o seguinte. O cara depois de chamar a reunião que eu e
muito mais gente estava participando com ele, às escondidas, fui querer saber o porquê de uns
podem se reunir e outros não? Ai ele me respondeu dizendo que eu não entendo as coisas, que só eu
participo dos encontros e fico falando em nome dos cineclubes baianos.
- Mas com isso eu concordo, porque os cineclubes baianos não
participam dos encontros?
- Aliás, não só os baianos!
- Os cineclubes baianos funcionam nas periferias, nos
alagados, eles não têm condições de ficar uma semana fora. Eles não têm dinheiro nem para alugar os
filmes. Eles passam filmes quando conseguem de graça, quando eu repasso do Clube de Cinema5, da Universidade ou quando peço e os
cineastas baianos liberam os filmes de para eles. Quer saber, os cineastas
baianos são os que mais emprestam filmes de graça pros cineclubes.
- Também pudera né, a maioria foram cineclubistas.
- Rapaz, a maioria nem trabalha...
- Quem não trabalha, os cineasta ou os cineclubistas?
- Tô falando dos cineclubistas. Eles não trabalham não é porque
são vagabundos, é que estão
desempregados e quando trabalhando, ganham muito pouco, nem
dar pra sustentar a família, aí todos têm que trabalhar, inclusive os irmãos menores. Então,
eles nem tem como pagar a condução para ir pegar os filmes, eu é que levo. Como
pessoas nessas condições podem participar de uma Jornada e ficar uma semana?
Primeira delegação baiana na 15 Jornada de Piracicaba, 1982. Promessa feita em Campo Grande, comprida em Piracicaba.
Dados como estes, apesar de não ser novidade, ditos assim, numa
situação como aquela, toma outro rumo, ganha outra dimensão, a realidade bate na
cara, no estômago, a questão de classe, de gênero, de raça, já estava na mesa
sem ao menos darem conta disso. Aliás, ela fora notada, na jornada seguinte
(Piracicaba, com o ônibus lotado da delegação baiana, entre outras). Jean-Claude
Bernadet numa conversa informal deu a deixa: os cineclubes mudaram, tem a cara
do povo, vê se pela maneira de vestir, de andar, pelo corte do cabelo6, pelos dentes, pela música que cantam,
como dançam, se divertem e pelo modo do falar. Já escutaram o som do português
que eles emitem; como soa diferente do que ouvimos nos filmes, na televisão?
Quem é mesmo que organiza os cineclubes? E o cineclubista é o que, público?
Retomando a linha do tempo do descambar do congresso e para
que essa conversa fuja do inverso do novelo, quanto mais desenrola, maior fica.
No Jornal Mural7 da Jornada,
essas e outras questões, estavam lá, registradas em forma de “Troféus”, a luta
classe, tão propagada já estava em ação. Visto hoje desta perspectiva, a luta
travada com o cineasta, exigindo concordância dele para suprir uma sequência do
seu filme8, quando exibido em
cineclubes periféricos, mas do que patéticos, estavam perdendo o bonde da
história.
Lobos mudam os pêlos, não a pele.
Referências e
Citações
¹ - “Avançar”
– Tendência política que atuou no Movimento Cineclubista Brasileiro, criada por
cineclubistas, militantes do Partido Comunista Brasileiro, depois da 12ª
Jornada Nacional de Cineclubes, Caxias do Sul, 1979, quando, por quatro ou cinco
votos, a chapa da Liberdade e Luta (LIBELU), tendência política, de inspiração Trotskista,
famosa no Movimento Estudantil e que atuava no cineclubismo, ameaçou o bloco
hegemônico liderado pela “Avançar”, perdendo a disputa pela direção do Conselho
Nacional de Cineclubes, até então e informalmente, dominando pelo também famoso
“Partidão”. Irônica e arrogantemente, o
nome “Avançar” fora retirado de uma frase de Stalin (Josef Vissarionovitch Stalin), quando
este ordena o avanço do Exército Vermelho sobre os invasores nazistas.
² - Luiz Felipe Bacelar de Macedo foi eleito presidente do Conselho
Nacional de Cineclubes em 1978, na 12ª Jornada Nacional de Caxias do Sul, RS.
³ - “O Baiano
Fantasma”1984, filme dirigido por Denoy de Oliveira.
4 - “Luiz Orlando
da Silva”, um dos maiores cineclubista do país, amigo de todos, nunca
pleiteou cargo, além do Movimento da Bahia, morto em agosto de 2006.
5 – “Clube de
Cinema da Bahia”, um dos mais importantes Clubes de Cinema do país, fundado
por Walter da Silveira, responsável pela condição de cineasta de Glauber Rocha.
Este participou da 1ª Jornada Nacional de Cineclubes, representando o Clube da
Bahia, em São Paulo, 1959. Depois disso o “Clube” foi dirigido por Guido Araújo
e sucedido por Luiz Orlando da Silva. Nesta condição ele participou do
cineclubismo brasileiro.
6 – “Jornal Mural”,
foi um expediente criado espontaneamente pelos cineclubes, sem registro em que
Jornada, onde se outorgava “Troféus” a cineclubistas e situações ocorridas
durante a realização das jornadas. Os “Troféus” adquiriram simbologias
significativas da cultura cineclubista, depois de sua primeira edição como Encarte dos “Anais da Jornada” de Ouro Preto, 1985, na gestão deste autor, que
apesar das poucas edições, são dignas de tese.
7 – Na plenária final da Jornada também, estas e outras
questões vieram à tona. As Moções de Apoio que as documentou para história.
Elas podem ser vistas nos “Anais da Jornada”, publicadas em brochuras pelo CNC.
Aliás, estas questões foram pré-anunciadas, mesmo que indiretamente, no cartaz da 14ª Jornada de Brasília, 1980,
onde se vê a fotografia negritada de um negro, cabelo Black-Power, tendo ao
fundo, películas cinematográficas em vermelho e branco, sobre o fundo preto e
preto, sobre o fundo branco, sugerindo alusão à maneira guerrilheira de
carregar munições, com o jeito cineclubista de qualificar de “revolucionário” o
movimento.
8 – João Batista
de Andrade, diretor do filme “O
Homem que Virou Suco” 1981, um clássico dos filmes exibidos pelos
cineclubes da época. Durante a Jornada, quase todos os Administradores
Regionais da Dinafilme, a Diretoria Executiva do CNC e vários cineclubes, se
reuniram com João Batista, solicitando a exclusão de uma sequência do filme, em
função de questões morais. João não concordou, mas deixou a questão em aberto
para critério do “movimento” e/ou de cada cineclube. Esta questão foi abordada
no texto “Proezas do Homem Que Virou Suco”, entre os cineclubes, publicada no
livro homônimo do filme, organizado por Ariane Abdalha e Newton Cannito, pela
Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, pag. 178 a 188,
desse autor.