Estripulias Cineclubistas
Este registro é para ficar circunscrito ao arco cinematográfico, não só das intrigas e futricas intestinais que viviam e
creio ainda vivem boa parte das relações cineclubistas, mas que ele possa viver também no brilho da tela.
Naquele tempo em que rebeldia era reclamo de
inteligência, vivência, sensualidade e o sutiã fora dispensado, cumprimentos
eram beijos trocados boca a boca e “Blenorragia, Uretrite Gonocócica”, a velha e conhecida gonorreía se curava com uma injeção de penicilina. A vida fluía com lenço e com documento... Tempo havia pela frente.
Entre a patota cineclubista se compartilhavam
umas e uns, outros e umas, salvo as reservas consentidas entre os pares. Alguns
grupos adotavam suas próprias formas de manter sua coesão.
O “estica-estica” fora uma delas. A
Rosana era um “mionzinho” que todos queriam experimentar.
Embora eles não soubessem, era ela quem dava as cartas. Sua vez e hora podiam
chega a qualquer, só que dependia dela. O João se gabava e se achava o mais experiente. Quando foi por ela atacado, sem aviso de que sua hora chegara, num curto espaço entre o oitavo andar e o térreo, sua experiência nem serviu para paralisar o elevador, foi puro
acidente. O Síndico, Seu Expedito, sem a permissão dos afoitos, sabia como
fazer o elevador cumprir sua rota traçada, dos dez andares, subindo ou descendo; afinal, em todos os andares havia uma empresa de filmes. Sãos e
salvos, meio despenteados, os dois saíram mais que depressa, ficando no olfato
do sindico um cheiro de tapete molhado.
Depois da Assembléia da Federação Paulista de
Cineclubes, a união do cineclube "Saga Operária" fora abalada. Rosana, numa questão de
relevância duvidosa, votou contra o grupo. Os motivos, não aqueles da
Assembléia, ela se negava a revelar, então não tinha outro jeito se não apelar
para o “estica-estica”, também conhecido como “puxa-puxa”, que
consistia em pegar nos braços e pernas, esticar ou puxar, como queira, até que
a vítima apresentasse um argumento plausível. Tê-la no grupo como dissidente
não era bom.
Na primeira sessão do “estica-estica”, o
esticado ficava em pé e era puxado pelos braços, um para o norte e o
outro para o sul. Na segunda sessão, o esticado ficava deitado, enquanto braços e pernas – eram puxados, ao mesmo tempo no
sentido dos pontos cardeais.
Havia certo espanto em todos, ela resistia às
duas sessões, mais do que Carlos, Fernando, Fernandes, João, Irene, Ana,
Jacira... Todos que já haviam passado por aquela situação entregavam os pontos
rapidinhos, por isso talvez, a união inabalável do Cineclube “Saga Operária”. No
íntimo de cada um, todos sabiam que força tinha, mas Ninguém achou que Alguém não usara força
suficiente. Mas quem aliviou? Pensou Todo Mundo que podia ter sido Qualquer Um que
estava fazendo corpo mole, mas Alguém pressentiu que além dele poderia ser Qualquer Um, que também conhecia o cheiro, o chamego e o sabor dela.
Alguém de Souza fez a proposta de pendurá-la pelas
pernas, de cabeça para baixo da janela do oitavo andar. A confissão era certa.
Todo Mundo achou boa ideia, mas reclamou prudência e Qualquer Um se prontificou
na ajuda, segurando uma das pernas, enquanto Ninguém a interrogava, mas para
isso, teriam que esperar o encerramento do expediente.
Deste ponto de vista do fato narrado, sem a presença de todo mundo, a versão em andamento tem uma vírgula dissonante, de que tal despautério pudesse ter chegado aquele ponto. A situação, segundo esse, chegou até o pé da janela que estava aberta. Certo é que os gritos despertaram a vizinhança, mas ficou por isso mesmo, afinal, poderia ser cena de um filme da “Boca do Lixo” que estava sendo rodado num dos andares do prédio de nº 134 da Rua do Triumpho, ou poderia até ser o tal teste do sofá, vai saber...
Aquela discussão da Assembléia martelava a
cabeça de Irene, que confidenciou para Ana e Jacira. Ambas, com as mesmas
interrogações, saíram, deixando Rosana em companhia dos homens. A sessão “estica-estica”
era uma dessas brincadeirinhas de mau gosto é verdade, mas o fim justificava os meios, diziam seus adeptos. Quer saber, ponderou Irene; vamos pro bar do seu Ferreira, enquanto tomamos uma gelada, daqui a pouco eles desistem.
- Jacira, tudo bem, mas não esqueça que apesar de tudo,
homem é homem.
- Irene, não se preocupe, a Rosana sabe se defender
muito bem, viu?
- Jacira, sei, mas eles estão em quatro.
- Ana, você tem razão Jacira, homem é homem, mulher é
mulher e este movimento cineclubista é machista pra caralho... Há lá isto é.
- Irene, você acha?
-Ana, você tem informação de alguma mulher presidente
da Federação Paulista ou do Conselho Nacional de Cineclubes?
- Jacira, a Aninha Cavalieri, Lurdinha Marcondes e a Marisa Anoni no Rio de
Janeiro, ah... Como é mesmo o nome dela? Aquela moça lá de Vitória que foi presidente
da Federação Capixaba... meu Deus, como é mesmo
o nome dela?
- Ana, estou falando de São Paulo, mas fora o Rio e
o Espírito Santo, onde mais? Que eu saiba é só. Alguma mesa, algum debate
específico sobre a questão da mulher cineclubista em algum encontro ou jornada
de cineclube, onde, quando?
- Irene, ok, pôr falta de informação, você por
enquanto tem razão.
- Ana, pois é né. Existe algum Acervo, Centro de
Memória onde se possa pesquisar? As Cinematecas, bibliotecas, os arquivos
desta área são deficitários. Os arquivos que existem estão misturados, tudo no assunto cinema.
- Jacira, pois não é que é mesmo, quem não tem memória,
não tem o que lembrar, não tem o que contar.
- Ana, não é o nosso caso, apesar da nossa
importância e desorganização com a questão.
Lá pela quinta ou sexta gelada, enquanto a
terceira ou quarta porção de linguiça frita com cebola banhada na
gordura queimada era sucumbida, a conversa da Assembléia voltou; e na mesa do
bar o assunto virou um verdadeiro “debate cineclubista”. Afinal, argumentava
Ana:
John Ford
- O John Ford matou mais índios do que o
General Costner...
- Esse General Coster, não é o Kevin Costner,
não é Jacira? Indagava Irene.
- Ih mina, tu já tá pra lá de “Marraquexe”,
groguinha, groguinha e só com duas cervejinhas. Depois não venha me perguntar
se foi Alguém, Qualquer Um, Todo Mundo ou Ninguém, quem faz a manutenção na sua
perseguida.
- Pôxa Irene, pra que tanta ironia?Quando eu tô chapada, eu não lembro mesmo, ué..., soluçando Jacira com os olhos lagrimejando olha para o teto.
- Questão de ordem, questão de ordem!
- Qual é meu, questão de ordem!? Aqui? Fala Ana, Qual é
a questão de ordem?
- Eu quero saber do filme, da conversa do
cineclube que a Rosana votou...
- Irena, ah não, meu, isso não é questão de ordem,
isto é questão de esclarecimento.
- Ana, tá bom, então esclarece...
- Irene, a gente estava falando do General Costner', o
Bufallo Bill, personagem dos filmes daquele reacionário do Jonh Ford.
- Jacira, mas então, é isso mermo... É aquele ator
irlandês, o tal “Jon Ueini”?
John Weyne
Joe Lynch e Cary Grant
Entre um arroto e outro, naquele burburinho do
boteco do Seu Ferreira, o debate avança e as cinzas dos cigarros já faziam
parte do tempero da nova porção de tira gosto que acabara de chegar à mesa.
- Ana, é isso mina, é aquele irlandês mesmo, o
tal John Weyne, aquele brutamontes, arrogante de merda, se meteu a besta com Cary Grant e levou umas porradas, no Set de filmagem.
- Irene, também pudera né? Cary Grant luta boxe,
poxa, puta covardia meu!
- Jacira, e é eu que tô pra lá de “Marraquexe”, né! Aquele reaça foi presidente do Comitê de Atividades "Anti-Americanas", fudeu meio mundo. Dalton Trumbo que o diga!
- Ana, é por isso que eu não entendo porque a Rosana
votou contra o Cineclube do CSO.
- Jacira, tem que explicar meu, tem que explicar
- Ana, explicar o quê? Ana, muito irônica, está prestes a ter um troço.
- Jacira, explica que CSO, é a sigla do Cineclube da Saga Operária - C, cineclube, S, saga, O, operária, foram eles que recusam a passar filmes em 16 mm do John Ford.
- Jacira, explica que CSO, é a sigla do Cineclube da Saga Operária - C, cineclube, S, saga, O, operária, foram eles que recusam a passar filmes em 16 mm do John Ford.
- Irene, Tá bom, eu sei, nós discordamos deles. A Rosana foi quem virou a lata. E depois Dona Jacira não confunda cú com calça, alho com bugalho e bitola com filme.
- Jacira, mas 8 é diferente de Super 8 e 35 mm é diferente de 16 e 70 mm.
Ana e Irene entram em parafuso, bebem e fumam ao mesmo tempo, Jacira achando que as amigas estão levando a sério aquele confusão provocada por ela, Jacira fala cariosamente com elas: Amigas, deixa os caras, meu, eles exibem os filmes que eles quiserem. Se eles não querem exibir filmes americanos, que não exibam, se não quer exibir filme do John Ford, que se foda o John Weyne.
Ana e Irene entram em parafuso, bebem e fumam ao mesmo tempo, Jacira achando que as amigas estão levando a sério aquele confusão provocada por ela, Jacira fala cariosamente com elas: Amigas, deixa os caras, meu, eles exibem os filmes que eles quiserem. Se eles não querem exibir filmes americanos, que não exibam, se não quer exibir filme do John Ford, que se foda o John Weyne.
- Ana, mas que é foda, lá isso é!
- Jacira, pois é, mas a questão é que o côro está
aumentando.
- Ana, agora é tu, explica logo antes que a coisa se complique
mais ainda.
- Jacira, a Federação Mineira de Cineclubes também não
quer passar filmes do John Ford.
- Ana, Não?
- Irene, Não?!
- Jacira, e não só filme do John Ford, mas americano e
até brasileiro.
- Ana, ah, não; ah não! Brasileiro não, isso não!
Que filme brasileiro os caras não querem exibir meu?
- Jacira, A Morte Comanda o Cangaço, do
Carlos Coimbra, é um deles. Eles dizem que o filme é tão Hollywoodiano como
os americanos.
- Irene, porra meu... Coitada da Aurora Duarte!
- Ana, lascou... Agora estou preocupada sabia.
- Irene, como assim? preocupada.
- Ana, o meu, que o cara matou muito índio, vai lá,
vai... Quem sabe pode até ser uma crítica.
- Jacira, crítica, bebeu mina é, bebeu? Crítica, aquela
matança toda... Crítica é a capacidade de ver o que está oculto... Eles exterminaram
quase tudo meu!
- Ana, o cara dirigiu “No Tempo das Diligências”, um
filmaço meu.
- Jacira, é um filmaço mesmo né meu, quebrou até o eixo, né!
- Ana, e “Vinhas da Ira”?
- Jacira, o que é que tem...?
- Ana, é que às vezes tenho a sensação que a relação
dos cineclubistas com o filme é só política ideológica. Fico com a sensação de
que o filme é uma peça ilustrativa para o discurso político. Cineclubista que
não conhece seu objeto de trabalho... fico cá a me perguntar, sabe pá, que tipo
de trabalho ele pode fazer? E o dia que ele descobrir o nome do Paulo Emilio Salles Gomes, como um dos roteirista do filme "A Morte Comanda o Cangaço"!
No Tempo das Diligências
Índios de "o Tempo das Diligências"
Cangaceiros de "A Morte Comanda o Cangaço"
Com a chegada dos outros membros do cineclube à
mesa do bar, o prognóstico de Irene se cumprira, o debate prosseguia noite a
dentro, enquanto a ausência de Rosana se fazia sentir naquela atmosfera já
bastante carregada.
O fato do filme americano ter sido barrado pelo
cineclube do CSO e pela Federação Mineira, é fato acontecido, o registro do C.A.
DINA (Conselho de Administração da Dinafilme), não deixa dúvida. Que a sessão
"estica-estica" que foi
narrada e re-contada com um ponto a mais ou uma vírgula a menos, isso já é
sabido. E que outras vozes testemunharam, fica a certeza da dúvida e as reticências para
os incrédulos, isso é normal. A oralidade é fonte e muitos ainda conjugam o
verbo cineclubar. Assim os sentidos das palavras seguiram a ordem da
narrativa.